domingo, 25 de julho de 2010

COMENTÁRIO DA CARTA AOS ROMANOS

Martinho Lutero

‘Paulo, servo de Jesus Cristo'

(Rm 1:1)

A idéia principal desta carta é derrubar, desfazer e destruir toda sabedoria e justiça da carne – isto é, da importância que tem aos olhos humanos , não importando a sinceridade e profundidade com que sejam praticadas. Além disso, a carta visa igualmente, implantar, estabelecer e dimensionar a realidade do pecado, não importando se temos consciência de sua existência ou não.

É por isso que Agostinho diz no capítulo sete do livro “Espírito e a Letra”: ‘O apóstolo Paulo discute com os orgulhosos e arrogantes, contra os presunçosos quanto às suas obras, etc; ademais na Carta aos Romanos, este é quase o único tema abordado e com tanta persistência e complexidade a ponto de cansar a atenção do leitor. Contudo é um cansaço útil e salutar”. Dentre os judeus e gentios sempre existiu quem acreditasse que virtude e conhecimento, não externos mas vinda do coração eram suficientes.

Muitos filósofos também pensavam assim. Os mais ilustres e pouco conhecidos, com exceção de Sócrates, viviam moralmente nesta prática. Todavia, ainda que fossem movido por um sentimento real de busca pela virtude e sabedoria e não buscassem a sua própria glória, não conseguiram evitar de se julgarem justos e bons em seus corações. Sobre estes o apóstolo diz: ‘Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos’ (Rm 1:22).

Nesta carta porém, é justamente o oposto que será ensinado. Pois na igreja não se deve apenas ensinar que nossa justiça e sabedoria, que de nada valem, não devem ser tomadas para nossa própria glória nem tampouco estimada pelos outros; mas devemos sim, nos entristecer pelo fato delas estarem destruindo e desfazendo nosso sentimento interior complacente (ainda que, para o Evangelho ‘a lâmpada acesa não deve ser posta debaixo do alqueire, mas o velador para que ilumine a todos que estão na casa’(Mt 5:15) e que ‘a cidade edificada sobre um monte não pode ser escondida’ (Mt 5:14).). Pois se desprezarmos estas coisas, será bem mais fácil não dar atenção ao julgamento ou elogio dos outros.

Quando Cristo diz pelo profeta Jeremias: ‘para arrancares e para derribares, e para destruíres, e para arruinares’(Jr 1:10), refere-se a tudo o que há em nós, o que nos agrada porque vem de nós mesmos e pertence a nós. E continuando diz: ‘e também para edificares e plantares’, implica em tudo o que está fora de nós e que se encontra em Cristo. Este é também o significado da figura de linguagem de Daniel em relação a pedra que ‘feriu a imagem’ (Dn 2:34). Pois Deus não nos quer salvar através de nós mesmos, mas através de uma justiça alheia; não se origina em nós , mas vem de fora, que não se ergue da terra mas vem do céu. Por isso, devemos vir a conhecer esta justiça que é completamente externa à nós. Eis porque a nossa própria justiça deve ser arrancada, conforme o Salmo 45, onde lemos: ‘Esquece-te do teu povo e da casa do teu pai’ (Sl 45:10) – assim como foi dito a Abraão deixar seu país. E em Cantares de Salomão lemos: ‘Vem do Líbano, minha noiva, e serás coroada’ (Can 4:8). Também o êxodo do povo de Israel foi por muito tempo interpretado como significando a transição do vício para a virtude. Mas deveria ser interpretado como o caminho da virtude para a graça de Cristo, pois quanto menos se percebe as virtudes como tais, tanto mais se tornam faltas maiores e piores e, assim, subjugam muito mais o afeto aos outros bens. Da mesma forma o lado direito do Jordão era mais temível do que o lado esquerdo.

Agora, porem, Cristo deseja que todos os nossos sentimentos sejam sóbrios de tal forma que não venhamos a temer ficar confusos por causa de nossas faltas, nem nos deleitemos nos louvores e alegria vãs por causa de nossa virtude. Além disso, deseja que não nos gloriemos diante dos homens pela justiça de fora que, vinda de Cristo, está em nós, nem tampouco nos entristecemos por causa dos sofrimentos e males que nos sobrevém pela sua busca.

Ademais, um cristão verdadeiro deve está tão despojado de tudo aquilo que chama de seu que nem honra nem desonra seja capaz de afetá-lo, pois sabe que a honra que lhe é dada é de Cristo, a quem pertence à justiça e os dons que nele brilham. Ao mesmo tempo, qualquer desonra que lhe é infligida atinge tanto a ele como a Cristo. Mas à parte da graça especial, se requer muita prática para que se chegue a perfeição. E mesmo que por seus dons naturais e espirituais um homem seja sábio, justo e bom aos lhos dos homens, não o é assim perante Deus, principalmente se ele se considera assim.

Portanto devemos nos manter humildes em relação a tudo isso, como se ainda estivéssemos nus, procurando pela misericórdia de Deus para que nos reconheça como justos e sábios. Isso Deus fará ao que for humilde, que não se antecipa à ação divina pela sua própria justificação e pela excessiva estima de si mesmo – como lemos em 1 Coríntios 4:3-5: ‘Eu não julgo a mim mesmo, mas quem me julga é o Senhor; portanto nada julgueis antes do tempo...’.

Certamente existem muitos que, como os judeus e os heréticos, desistem de todos os bens da mão esquerda, os bens temporais, pela busca desregrada e voluntária de Deus, mas poucos são os que para obter a justiça de Cristo tem em conta de nada os bens da mão direita, os espirituais e as obras de justiça. Com certeza os judeus e os heréticos são incapazes de assim fazer. Contudo, sem isso ninguém pode ser salvo. Pois todos esperamos e desejamos que nossas realizações sejam aceitas e recompensadas por Deus. Mas permanece como verdade eterna que: ‘isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus que se compadece’ (Rm 9:16).

Mas voltando à carta, não creio que seus destinatários, que o apóstolo diz ‘chamados santos e amados de Deus’, fossem de tal sorte que houvesse a necessidade do apóstolo intervir em suas disputas e daí concluir que todos eram pecadores; pois se eram cristãos, saberiam disso pela sua fé. Creio, porém, que tomou a iniciativa de escrever aos crentes de Roma para disponibilizar o testemunho de um grande apóstolo à fé deles e para ensinar quando disputassem com os judeus e gentios de Roma descrentes que se gloriavam na carne contra a sabedoria humilde dos crentes, pois estes crentes não tinham escolha senão viver entre eles e assim envolverem-se em contradições em tudo o que ouviam e falavam. Neste sentido, ele escreve no quinto capítulo da segunda carta aos Coríntios: ‘Porque não nos recomendamos outra vez a vós; mas damos ocasião de vos gloriardes de nós, para que tenhais que responder aos se gloriam na aparência, e não no coração’ (2 Cor 5:12).

Este é o dever de um ministro de Deus prudente, exercer seu ministério com honra e fazer com que este seja respeitado por aqueles que estão sob seu encargo. Além disso, é dever do ministro fiel não exceder em seus poderes e não abusar de seu ofício de forma orgulhosa, mas sim, administrá-lo para o bem dos outros. Deve ser um ‘servo fiel e prudente’ (Mt 24:45). Se não for prudente se tornará inútil, incapaz e indigno de respeito. Pessoas que numa humildade imprudente praticam a familiaridade com quase todo mundo e se colocam no mesmo nível que aqueles sob seu encargo, não podem senão perder a verdadeira autoridade da liderança, pois sua familiaridade produz desprezo. Pecam gravemente os que assim agem! Pois aquilo que pertence a Deus e é posto à administração deles, e o que devem fazer para serem honrados, deixam que seja desprezado. Se não for fiel, se torna um tirano que quer aterrorizar pelo seu poder. Ao invés de cuidar para que sua alta posição seja útil para os outros, tais pessoas querem ser temidas. Contudo, conforme diz o apóstolo, a autoridade de seu ofício é dada não para destruir e sim para edificar.

Se tivermos que especificar tais faltas, diríamos que são indulgência e severidade. Da primeira lemos em Zacarias 11:17: ‘Ai do pastore inútil que abandona o rebanho’.

E da segunda Ezequiel diz: ‘Dominas sobre elas com rigor e dureza’ (Zc 34:4).

Estas são as duas faltas principais das quais todas as outras faltas do clérigos se erguem. E não nos admira, pois a indulgência está enraizada na concupiscência e a severidade na ira. Estas são as fontes de todo mal como bem conhecemos. Portanto, é muito perigoso exercer algum ofício a menos que estas duas feras estejam domadas, pois quanto mais autoridade tiver, tanto mais males causaram.

No prólogo ou preâmbulo desta carta, o apóstolo se apresenta como um eficiente exemplo de alguém que se opõe a estes dois monstros. Pois primeiro, para não ser desprezado como incapaz e brando, ele engrandece seu ministério com alta honra. Em segundo lugar, para não ser considerado um tirano, se cerca de afeição aos que lhes são subordinados demonstrando boa vontade para com eles.

Com uma mistura de temor e amor ele os prepara para a recepção do evangelho e da graça de Deus. Seguindo o exemplo do apóstolo, todos os clérigos da Igreja (como um animal que tem o casco fendido e é puro) deve antes fazer distinção entre si mesmo e seu ministério, isto é, entre ‘a forma de Deus’ e ‘a forma de servo’ e se considerar como o mais baixo de todos, equilibrando seu ministério entre temor e amor visando totalmente o bem estar e proveito do povo. Além disso, deve saber que pelo fato de todo ofício ser dado unicamente para o bem estar e proveito do povo, deve sempre querer desistir dele se achar que não pode administrá-lo para benefício de seu povo ou quando o bloqueia por causa de si mesmo. De fato, é nisto que consiste todo o pecado dos clérigos: privam o ministério de seus frutos por uma ou ambas destas falhas.

Por isso o apóstolo diz: ‘servo de Jesus Cristo’. Nesta palavra tanto há majestade como humildade: há humildade na medida em que não se considera senhor e criador à maneira dos tiranos orgulhosos que usam de sua autoridade de tal maneira que parecem não pensar em nada mais além da própria autoridade, como se a produzissem e não a tivessem recebido de outro. Não encontram, portanto, os frutos de sua autoridade, mas simplesmente desfrutam do próprio poder em si mesmo. E há majestade na medida em que se alegra em servir um Senhor como este. Pois se é perigos não honrar e saudar um servo do imperador, que dirá dos que não honram e saúdam os servos de Deus?

A frase ‘servo de Jesus Cristo’ é, portanto, uma palavra grande e terrível. Creio que a palavra ‘servo’ aqui é um termo usado para indicar um ofício e uma dignidade; não se refere ao serviço e homenagem do próprio Paulo à Deus. Em outras palavras, creio que o apóstolo não quer chamar a atenção para seus trabalhos pessoais pelos quais serve a Deus, pois isso significaria arrogância. Pois quem seria tão corajoso em dizer ‘Sou servo de Deus!’, tendo em vista o fato de que este não pode saber se fez tudo o que Deus requer dele? Por isso Paulo diz em 1 Coríntios 4:3: ‘Eu não julgo a mim mesmo’. Somente a Deus cabe julgar e decidir se alguém é servo ou inimigo. Assim, Paulo chama a si mesmo de servo porque quer confessar que recebeu de Deus o ofício de cuidar dos outros, como se dissesse: Eu prego o Evangelho e ensino as igrejas, eu batizo e faço outras obras que pertencem apenas a Deus. Não faço isso como um senhor sobre vocês mas como um servo de Deus comissionado a ministrar á vocês. Sou um servo em favor de vocês e meu ‘serviço’ não é outro senão minhas obrigações para com você. Sua preocupação final é Deus.

Não é o mesmo ‘serviço’ que se espera que todos nós rendamos a Deus. Em resumo: em sentido moral e tropológico todo mudo é servo de Deus por e para si mesmo, mas em sentido alegórico, alguém é servo de Deus para outros e sobre outros, para o cuidado de outros. O primeiro significa uma dignidade sublime, o último uma forma completa de submissão e humildade. Além disso, em relação a este último, pode-se ter certeza e gloriar-se em seu trabalho, mas não em relação ao outro. Da mesma forma, o servo de Deus em sentido alegórico beneficia e serve a outros, enquanto o outro ‘servo’ beneficia-se a si mesmo apenas. Um é um dom especial para poucos, mas o outro deve ser comum à todos. Um deve exercer tarefas definidas e claramente delineadas, enquanto o outro deve fazer tudo o que puder. Um pode existir sem a graça, mas o outro não pode existir senão pela graça. Um é mais digno enquanto o outro é mais completo. Um é manifestado aos homens na glória, mas o outro não é suficientemente conhecido se quer por si mesmo, como já foi dito acima.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Textos de Martinho Lutero

Martinho Lutero

Carta aberta sobre a Tradução e a Intercessão dos Santos


Ao honorável e distinto N., meu estimado senhor e amigo.

Graça e paz em Cristo, honorável, distinto, caro senhor e amigo! Recebi sua carta com as duas questões ou perguntas, sobre as quais solicita minha posição: primeiramente, por que eu, no terceiro capítulo da Epístola aos Romanos, versículo 28, traduzi as palavras de Paulo, Arbitramur hominem iustificari ex fide absque operibus, como “Sustentamos que o homem é justificado somente pela fé, sem as obras da lei”; e além disso, nela também observa que os papistas se enfurecem extremamente porque no texto de Paulo não consta a palavra sola (somente) e não se poderia tolerar um tal acréscimo de minha parte à Palavra de Deus etc. Depois, se também os santos mortos intercedem por nós, porque lemos que até os anjos intercedem por nós etc. À primeira pergunta, se desejarem, podem responder aos papistas de minha parte o seguinte:

Em primeiro lugar, se eu, doutor Lutero, tivesse podido enganar-me de que todos os papistas juntos fossem tão hábeis a ponto de saberem traduzir bem e corretamente um único capítulo da Escritura, então teria sido muito humilde e lhes teria solicitado ajuda e assitência para a tradução em alemão do Novo Testamento. Mas como eu sabia e ainda posso ver que nenhum deles sabe realmente como se deve traduzir ou falar em alemão, poupei-me a mim e a eles um tal esforço. No entanto, percebe-se bem que eles aprendem a falar e a escrever em alemão a partir de minha tradução e de meu alemão, e roubam-me em muito minha língua, que até então pouco conheciam; porém não me agradecem por isso mas preferem utilizá-la contra mim. Contudo, é com prazer que lhes proporciono isso, pois me agrada estar ensinando a falar a meus discípulos ingratos, que ademais são meus inimigos.

Por outro lado, pode dizer que eu traduzi o Novo Testamento como melhor pude e o mais consciencioso possível; e não obriguei ninguém a lê-lo, mas dei liberdade, apenas prestando um serviço àqueles que não podem fazê-lo melhor. A ninguém está proibido apresentar uma tradução melhor. Quem não quiser lê-lo que o deixe estar. Não peço nem louvo a ninguém por isso. É meu Testamento e minha tradução, e deve ser e permanecer meu. Se nalguma parte dele eu errei (coisa que não sei, pois não quis traduzir conscientemente errado uma letra sequer por deliberação), não vou por causa disso tolerar os papistas como juízes, pois eles ainda têm orelhas muito longas e seu zurro é muito fraco para julgar minha tradução. Eu sei muito bem, e eles sabem muito menos que o animal do moleiro, quanta arte, aplicação, razão e entendimento compete ao bom tradutor, pois que nunca tentaram.

Diz-se: “Quem constrói junto ao caminho tem muitos mestres”. O mesmo acontece comigo. Os que nem sabiam falar corretamente, quanto mais traduzir, tornaram-se sobretudo meus mestres, e devo ser discípulo de todos eles. Mas se eu tivesse que lhes perguntar como se deveria traduzir as duas primeiras palavras do primeiro capítulo do Evangelho de Mateus, “liber generationis”, nenhum deles teria sabido dar um cacarejo sequer, e agora julgam, os bons companheiros, a obra inteira. O mesmo aconteceu a São Jerônimo. Porque ele traduziu a Bíblia, todo mundo foi seu mestre, e ele era o único que não sabia nada, e julgavam a obra do bom homem aqueles que não teriam sido dignos de limpar-lhe os sapatos. Por isso é necessária muita paciência àquele que quiser fazer algo bom para o público, pois o mundo quer ser especialista e tem sempre que enfrear o cavalo pelo rabo, ensinar tudo sem nada saber. É sua maneira de ser, da qual não conseguem abdicar.

Contudo, gostaria sinceramente de ver um papista que se sobressaísse e traduzisse por exemplo uma das Epístolas de São Paulo ou de um profeta, desde que para isso não se servisse do alemão e da tradução de Lutero; então veríamos um alemão ou uma tradução elegante, bela, admirável! Pois já vimos o embusteiro de Dresden, que se apropriou de meu Novo Testamento (não quero mais mencionar seu nome em meus livros; ademais, ele também tem agora seus juízes e é bem conhecido). Ele confessa que meu alemão é suave e bom; percebeu que não podia fazer melhor e quis destroçá-lo. Assim, tomou meu Novo Testamento, quase palavra por palavra, da forma como eu o compus, retirou meu prefácio, comentários e meu nome, depois acrescentou seu nome, prefácio e comentários, e desta forma vendeu meu Novo Testamento com seu nome. Ah, queridos filhos, quanta dor me causou quando seu príncipe, num prefácio horroroso, condenou e proibiu ler o Novo Testamento de Lutero, e além disso recomendou a leitura do Novo Testamento do embusteiro, que na verdade é o mesmo que Lutero compôs.

E para que ninguém aqui pense que estou mentindo, coloque ambos os Testamentos diante de si, o de Lutero e o do embusteiro, compare-os entre si, e verá quem é o tradutor de ambos. Pois o que ele remendou e alterou em uns poucos trechos, ainda que nem tudo me agrade, bem o posso tolerar, e não me incomoda particularmente, enquanto diz respeito ao texto. Por isso eu nunca quis escrever algo em contra, mas tive que rir da grande sabedoria com que se caluniou, condenou e proibiu tão horrendamente meu Novo Testamento quando foi publicado sob meu nome, mas tiveram que lê-lo quando foi publicado sob outro nome. No entanto, que virtude é essa de difamar e desonrar o livro de alguém, depois roubá-lo e publicá-lo sob nome próprio, buscando assim honras e renome através do caluniado trabalho alheio, deixo aos seus juízes classificar. Entrementes, para mim é o bastante e estou contente que meu trabalho (como também se gloria São Paulo) seja também fomentado por meus inimigos, e o livro de Lutero sem o nome de Lutero seja lido sob o nome de seus inimigos. Como poderia eu vingar-me melhor?

Voltando novamente à questão. Se o seu papista quer incomodar-se bastante com a palavra sola-somente, diga-lhe logo: o doutor Martinho Lutero quer assim e diz que papista e asno é a mesma coisa. “Sic uolo, sic iubeo, sit pro ratione uoluntas” [“assim quero, assim ordeno, tome-se a vontade por razão”]. Pois não queremos ser alunos nem discípulos dos papistas, mas seus mestres e juízes. Queremos por uma vez também gabar-nos e vangloriar-nos com essas cabeças de asno. E como São Paulo se gloria contrapondo-se aos santos insensatos, assim também eu quero gloriar-me contrapondo-me a esses meus asnos. Eles são doutores? Eu também. Eles são eruditos? Eu também. Eles são pregadores? Eu também. Eles são teólogos? Eu também. Eles são argumentadores? Eu também. Eles são filósofos? Eu também. Eles são dialéticos? Eu também. Eles são preletores? Eu também. Eles escrevem livros? Eu também.

E quero continuar gloriando-me: Eu sei interpretar os salmos e os profetas; eles não sabem. Eu sei traduzir; eles não sabem. Eu sei rezar; eles não sabem. E para falar de coisas menores: eu entendo sua própria dialética e filosofia melhor do que todos eles juntos. E além disso sei deveras que nenhum deles entende seu Aristóteles. E se há alguém entre todos eles que entenda corretamente um prefácio ou um capítulo de Aristóteles, deixarei que me açoitem. Não estou agora exagerando, pois fui educado e adestrado desde a juventude em toda sua arte, e sei muito bem quão profunda e vasta ela é. Da mesma forma eles sabem muito bem que eu sei e posso tudo o que eles podem. Não obstante, essa gente insana se comporta comigo como se eu fosse um hóspede em sua arte, que tivesse chegado apenas hoje pela manhã e nunca tivesse visto nem ouvido o que eles estão aprendendo ou podem fazer; assim tão maravilhosamente ostentam sua arte e me ensinam o que eu há vinte anos gastei em solas de sapato; de forma que eu também, em resposta a todos seus berros e gritos, tenho que cantar com aquela rameira: “Faz sete anos que eu sei que os pregos das ferraduras são de ferro”.

Valha isto como resposta à sua primeira pergunta; e rogo-lhes que a tais asnos e seus berros inúteis por causa da palavra sola não respondam nada mais nem diferente disso: Lutero quer mantê-la assim e diz que é doutor acima de todos os doutores do papado inteiro; por isso deve permanecer aí. Doravante quero apenas desprezá-los e tê-los desprezado, enquanto são pessoas – queria dizer asnos – desta classe. Pois entre eles há uns patetas descarados que nunca aprenderam nem sua própria arte, a dos sofistas, como o doutor Schmidt e o doutor Rotzlöffel e seus semelhantes, e colocam-se contra mim nesta questão, que está acima não apenas da sofistaria, mas também, como diz São Paulo, acima da sabedoria e da razão de todo mundo. Realmente, um asno não precisa cantar muito: é logo reconhecido pelas orelhas.

A vocês, porém, e aos nossos quero mostrar por que eu quis usar a palavra sola, embora em Romanos 3, 28 não tenha utilizado sola, mas solum ou tantum. Com quanta exatidão vêem meu texto, os asnos! Contudo, utilizei em outro lugar sola fide, e quero manter ambas, solum e sola. Ao traduzir, esforcei-me em escrever um alemão puro e claro. E aconteceu-nos muitas vezes passarmos catorze dias, três, quatro semanas, buscando e perguntando-nos por uma única palavra, e, contudo, às vezes não a encontramos. Em trabalhamos o mestre Philipp, Aurogallus e eu, e, às vezes, em quatro dias conseguíamos aprontar apenas três linhas. Meu caro, agora está traduzido e pronto. Qualquer um pode ler e entendê-lo. Doravante pode um leitor percorrer com os olhos três, quatro páginas sem tropeçar uma vez sequer, mas não percebe quantos paus e pedras havia ali onde agora caminha como que sobre uma tábua aplainada, onde tivemos que suar e nos angustiar até tirarmos os paus e as pedras do caminho para que se pudesse prosseguir tão bem. É fácil arar quando o campo está limpo! Mas arrancar a floresta e os tocos e preparar o terreno, isso ninguém quer fazer. Não se deve esperar do mundo qualquer gratidão. Nem o próprio Deus recebe gratidão por causa do sol, do céu e da terra, nem pela morte de seu próprio filho. Que o mundo seja e continue sendo em nome do diabo, porque não quer outra coisa.

Do mesmo modo, eu sabia muito bem que em Romanos 3 não havia a palavra solum no texto latino ou grego, e não precisavam me ensinar isso os papistas. É verdade, estas quatro letras s-o-l-a, que as cabeças de asno admiram como as vacas a uma nova porteira, não estão no texto. Eles não vêem que isso corresponde perfeitamente ao sentido do texto, e, quando se quer traduzir com clareza e consistência em alemão, deve estar presente, porque eu quis falar em alemão, não em latim nem em grego, quando me propus falar em alemão ao traduzir. Isso, porém, é propriedade de nossa língua alemã, que, quando usada para tratar de duas coisas, das quais uma é afirmada e outra negada, necessita da palavra solum-allein, acompanhando a palavra nicht ou kein. Assim, por exemplo, quando se diz: “Der Baur bringt allein Korn, und kein Geld” [“O camponês traz somente grãos e nenhum dinheiro”]. “Nein, ich hab wahrlich jetzt nicht Geld, sondern allein Korn” [“Não, realmente agora não tenho dinheiro, mas apenas grãos”]. “Ich habe allein gegessen und noch nicht getrunken” [“Eu somente comi e ainda não bebi”]. “Hast du allein geschrieben und nicht durchgelesen?” [“Apenas escreveste e não leste?”]. E inúmeras formas semelhantes no uso diário.

Se tanto a língua latina como a grega não procedem desta forma em todos estes idiomatismos, a alemã procede assim, e é de sua propriedade usar a palavra allein a fim de que a palavra nicht ou kein resulte mais plena e clara. Pois, embora eu também possa dizer: “Der Baur bringt Korn und kein Geld”, assim dita, a expressão kein Geld não soa tão plena e clara como quando eu digo: “Der Baur bringt allein Korn und kein Geld” [“O camponês traz somente grãos e nenhum dinheiro”]: aqui a palavra allein ajuda a palavra kein a produzir uma fala plena, alemã, clara. Pois não se tem que perguntar às letras na língua latina como se deve falar alemão, como fazem os asnos, mas sim há que se perguntar à mãe em casa, às crianças na rua, ao homem comum no mercado, e olhá-los na boca para ver como falam e depois traduzir; aí então eles vão entender e perceber que se está falando em alemão com eles.

Assim, quando Cristo fala: “Ex abundantia cordis os loquitur”, se eu fosse seguir esses asnos, eles me apresentariam a letra e traduziriam assim: Aus dem Überfluss des Herzens redet der Mund [“Da abundância do coração fala a boca”]. Diga-me: isso é falar alemão? Que alemão entenderia uma coisa dessas? Que coisa é “abundância do coração”? Nenhum alemão poderia dizer isso, a não ser que quisesse dizer que alguém tem um coração demasiado grande ou tem coração demais; embora isto também não seja correto. Pois, “abundância do coração” não é alemão, assim como não é alemão “abundância da casa”, “abundância da estufa”, “abundância do banco”, porém assim fala a mãe em casa e o homem comum: Wes das Herz voll ist, des gehet der Mund über [“A boca fala daquilo de que o coração está cheio]. Isto é falar um bom alemão, pelo que eu me esforcei, e infelizmente nem sempre consegui ou o encontrei. Pois as letras latinas dificultam muito a formulação para se falar em bom alemão.

Do mesmo modo, quando Judas o traidor diz em Mateus 26, 8: “Vt quid perditio haec?” [“A troco de que esse desperdício?”] E em Marcos 14, 4: “Vt quid perditio ista unguenti facta est?” [“A troco de que esse desperdício do perfume?]. Se eu fosse seguir os asnos e os literalistas, eu deveria traduzir assim: Warum ist diese Verlierung der Salben geschehen? [“Por que aconteceu esta perdição de bálsamo?”] Mas que alemão é este? Que alemão fala desta forma: “Aconteceu a perdição do bálsamo?” E se ele entendesse corretamente, isso acreditaria ele, o bálsamo estaria perdido e teria que ser novamente buscado; embora isto também ainda soe obscuro e incerto. E se isto é um bom alemão, por que eles não se apresentam e nos fazem um novo, distinto e belo Testamento em alemão e deixam de lado o Testamento de Lutero? Acredito mesmo que eles deveriam revelar sua arte. Mas o homem alemão fala assim (“Vt quid” etc.): Was soll doch solcher Unrat, ou, Was soll doch solcher Schade? Nein, es ist schade um die Salbe [“Que bobagem é essa?”, ou, “Pra que isso?”, “Não, que pena pelo bálsamo!”]; isto é um bom alemão, e assim se entende que Madalena se portou inapropriadamente e esbanjou derramando o bálsamo; era a opinião de Judas, que imaginava fazer um uso melhor.

Igualmente quando o anjo saúda Maria e fala: Gegrüßet seist du, Maria voll Gnaden, der Herr mit dir [“Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é contigo”]. Pois bem, até agora isto foi simplesmente traduzido segundo as letras latinas. Mas diga-me se algo assim também é um bom alemão. Onde é que um homem alemão fala desta forma: Du bist voll Gnaden [“estás cheia de graça”]? Que alemão entende o que significa voll Gnaden [“cheia de graça”]? Ele deve pensar num barril cheio de cerveja, ou num saco cheio de dinheiro; por isso eu traduzi: Du Holdselige [“agraciada”], com o que um alemão pode imaginar muito melhor o que o anjo quer dizer com sua saudação. Mas aqui os papistas se enfurecem comigo porque eu teria pervertido a saudação angelical, muito embora eu com isso ainda não tenha encontrado o melhor alemão. Se eu tivesse aqui tomado o melhor alemão e traduzido a saudação: Gott grüße dich, du liebe Maria [“Deus te saúda, querida Maria”] (pois isto tudo o anjo quer dizer, e assim ele teria falado, se tivesse querido saudá-la em alemão), creio que eles mesmos se enforcariam por excesso de zelo para com a querida Maria, porque eu teria aniquilado a saudação.

Mas que me importa se eles vociferam ou se enfurecem? Não pretendo impedir que eles traduzam o que quiserem em alemão; mas pretendo também eu traduzir em alemão, não como eles querem, mas como eu quero. Quem não gostar, que me deixe em paz e guarde sua maestria para si, pois não quero vê-la nem ouvi-la; eles não precisam responder à minha tradução nem prestar contas dela. Você está ouvindo bem: eu quero dizer: du holdselige Maria, du liebe Maria [“agraciada Maria, querida Maria”], deixe-os dizerem: Du voll Gnaden Maria [“Maria cheia de graça”]. Quem sabe alemão, sabe bem quão delicada palavra é esta que vai ao coração: querida Maria, querido Deus, querido imperador, querido príncipe, querido homem, querida criança. Eu não sei se se pode expressar a palavra liebe [“querido, amado”], de tanta cordialidade e plenitude, também em latim ou em outras línguas, de forma que igualmente penetre e ressoe no coração através de todos os sentidos, como o faz em nossa língua.

Pois eu considero que São Lucas, enquanto um mestre nas línguas hebraica e grega, quis fazer a palavra hebraica, na forma como o anjo a utilizou, corresponder à grega kexaritwme&nh e torná-la clara. Imagino que o anjo Gabriel falou com Maria como fala com Daniel, chamando-o hamudoth e isch hamudoth, uir desideriorum, ou seja, “querido Daniel”. Pois esta é a maneira de Gabriel falar, como vemos em Daniel. Se eu fosse traduzir em alemão a palavra do anjo conforme a arte dos asnos, segundo a letra, eu teria que dizer: Daniel, du Mann der Begierungen [“Daniel, homem dos apetites”] ou Daniel, du Mann der Lüste [“Daniel, homem dos desejos”]. Oh, que belo alemão! Um alemão entende bem que Mann, Lüste, ou Begierungen são palavras alemãs, embora não sejam palavras totalmente próprias alemãs, melhor estariam se no singular Lust e Begier. Mas quando são unidas deste modo: Du Mann der Begierungen, nenhum alemão sabe o que se disse, e acredita que Daniel talvez esteja cheio de desejos maus. Esta seria uma delicada tradução! Por isso aqui eu tenho que abandonar as letras e investigar como o homem alemão expressa isso que o homem hebraico denomina Isch hamudoth: então eu reconheço que o homem alemão fala assim: “querido Daniel”, “querida Maria”, ou “agraciada jovem”, “graciosa donzela”, “doce mulher” e semelhantes. Pois quem quiser traduzir deve possuir um grande acervo de palavras, a fim de que possa ter à mão a melhor quando uma delas não soar bem em nenhum lugar.

Mas para que falar tanto e tanto tempo sobre tradução? Se eu fosse assinalar as causas e as reflexões sobre todas minhas palavras, provavelmente teria que escrever durante todo um ano. Que arte e trabalho é a tradução experimentei muito bem! Por isso não vou tolerar como juiz ou crítico nenhum asno papista ou mulo, que nunca tentaram nada. Quem não quer minha tradução que a deixe estar. O diabo agradece aquele que não gosta dela ou a aperfeiçoa sem minha vontade e conhecimento. Se deve ser aperfeiçoada, quero fazê-lo eu mesmo. Se eu mesmo não o faço, deixem-me em paz com minha tradução, e que cada um faça o que quiser para si mesmo e passe bem!

Posso afirmar com a consciência tranqüila que dediquei a ela minha mais alta fidelidade e diligência, e nunca tive falsas intenções, pois não aceitei, nem procurei, nem ganhei qualquer centavo por isso. Da mesma forma, não busquei nela minha honra, sabe-o Deus, meu Senhor, porém a fiz por serviço aos amados cristãos e para honra daquele que está sentado no alto, e que em todas as horas tanto bem me faz, que mesmo se eu tivesse traduzido mil vezes tanto e tão diligentemente, não mereceria contudo viver por uma hora ou ter um olho são: tudo deve-se à sua graça e misericórdia, também o que eu sou e tenho, sim, deve-se a seu precioso sangue e amargo suor; por isso, tudo, pela vontade de Deus, deve servi-lo para sua honra, com alegria e de coração. Se os embusteiros e os papistas me difamam, me louvam os cristãos piedosos junto a Cristo, seu Senhor, e eu também estaria ricamente recompensado se fosse apenas um único cristão a me considerar um trabalhador leal. Não me preocupam os asnos papistas, que não são dignos de avaliar meu trabalho, e eu lamentaria do fundo do coração se eles me absolvessem. Sua calúnia é minha maior fama e honra. Contudo, quero ser um doutor, e até um doutor exemplar, e eles não hão de tomar-me este nome até o dia do juízo final, disso tenho certeza.

Por outro lado, não abandonei completamente a letra, mas observei-a com grande cuidado junto a meus ajudantes, de maneira que, quando necessário, mantive-a e dela não me afastei tão livremente; como em João 6, 27, onde Cristo fala: Diesen hat Gott der Vater versiegelt [“A este, Deus Pai o selou”]. Certamente teria sido um alemão melhor: Diesen hat Gott der Vater gezeichnet, ou, diesen meinet Gott der Vater [“A este, Deus Pai o marcou”, ou, “A este, referiu-se Deus Pai”]. Mas preferi corromper a língua alemã a negligenciar a palavra. Ah, a tradução não é em absoluto uma arte para qualquer um, como acreditam os santos insensatos!; a ela pertence um coração reto, piedoso, fiel, diligente, temente, cristão, erudito, experiente, treinado. Por isso penso que nenhum falso cristão ou espírito sectário sabe traduzir fielmente, como se depreende da tradução dos Profetas, em Worms, em que certamente se aplicou grande diligência e observou-se muito meu alemão. Mas havia judeus presentes, que não mostraram muita benevolência para com Cristo; no demais houve suficiente arte e cuidado.

Isto é o que havia para ser dito quanto à tradução e à propriedade das línguas. Eu, porém, não confiei somente na propriedade das línguas e a observei ao acrescentar solum, “somente”, em Romanos 3, 28, mas também o texto e o pensamento de São Paulo o exigem e o reclamam com força; pois ele trata ali mesmo do elemento principal da doutrina cristã, ou seja, que nós somos salvos pela fé em Cristo, sem qualquer obra da lei; e exclui todas as obras tão claramente que chega a dizer que as obras da lei (que obviamente é a lei e a Palavra de Deus) não colaboram para a salvação; e dá como exemplo Abraão, que foi salvo tão isento das obras que, inclusive a maior delas, que então fora um novo mandamento de Deus acima de todas as outras leis e obras, a saber, a circuncisão, não lhe ajudou para a salvação, mas foi salvo pela fé, sem a circuncisão e sem qualquer obra, como ele fala no capítulo 4: “Se Abraão foi salvo pelas obras, ele pode se vangloriar, mas não diante de Deus”. Pois bem, onde se exclui tão completamente todas as obras – e esse deve ser o sentido de que somente a fé salva – e quer-se falar claramente e diretamente de uma tal exclusão das obras, tem-se que afirmar: Somente a fé e não as obras nos salvam. Isso é exigido pela própria questão além da propriedade da língua.

Sim, eles dizem que soa escandaloso e com isso as pessoas aprendem que não precisam fazer boas obras. Mas meu caro, o que se lhes pode responder? Muito mais escandaloso é o fato de que o próprio São Paulo não diga somente a fé, mas descarregue ainda mais duramente encerrando a questão: sem as obras da lei, e em Gálatas 2, 16: não pelas obras da lei, e semelhantes em outras passagens. A expressão somente a fé ainda admitiria um comentário, mas a expressão sem as obras da lei é tão dura, escandalosa e abominável, que não pode ser amenizada com nenhum comentário. Muito mais poderiam as pessoas aprender com isso a não fazerem boas obras, pois elas ouvem das próprias obras pregar com palavras tão duras e fortes: Nenhuma obra, sem obras, não pelas obras. Se não é escandaloso que se pregue: Sem obras, nenhuma obra, não pelas obras, por que seria escandaloso então pregar somente a fé?

É algo ainda mais escandaloso que São Paulo rejeite não apenas obras simples e comuns, mas também as da própria lei. Com isso alguém bem poderia irritar-se ainda mais e dizer que a lei é condenada e maldita diante de Deus e se deveria fazer só o mal, como se dizia em Romanos 3, 8: “Façamos o mal para que se torne o bem”, como começou a fazer também um espírito sectário em nossa época. Por causa de um tal escândalo se deveria então renegar a palavra de São Paulo ou não falar francamente e livremente da fé? Meu caro, precisamente São Paulo e nós desejamos tais escândalos e é esta a única razão por que pregamos tão fortemente contra as obras e insistimos somente na fé, a fim de que as pessoas se escandalizem, tropecem e caiam para poderem aprender e saber que não se santificam através de suas boas obras, mas somente pela morte e ressurreição de Cristo. Se elas não podem se santificar pelas boas obras da lei, muito menos poderão se santificar pelas más obras e sem a lei. Disso não se pode concluir que se as boas obras não ajudam, as más obras ajudam, assim como não se pode concluir que se o sol não pode ajudar o cego a ver, então a noite e a escuridão hão de ajudá-lo a ver.

Quanto à outra pergunta, se os santos falecidos intercedem por nós, quero responder agora brevemente, pois pretendo publicar um sermão sobre os queridos anjos, onde, (se Deus quiser), continuarei tratando desse assunto mais detalhadamente. Em primeiro lugar, vós sabeis que no papado não se ensina apenas que os santos no céu rogam por nós, o que de qualquer forma não podemos saber, porque a Escritura não nos diz isso, mas também transformaram os santos em deuses, de modo que acabaram tornando-se nossos patronos, os quais devemos invocar, sendo que alguns nunca existiram, cabendo a cada santo força e poder especiais, um sobre o fogo, outro sobre a água, outro sobre a peste, febre e toda a sorte de praga, a ponto de o próprio Deus ficar ocioso, deixando os santos atuarem e trabalharem em seu lugar. Esta atrocidade, os Papistas, agora, estão percebendo muito bem, baixando a bola discretamente e salvando a sua imagem com a intercessão dos santos. Mas isso eu vou deixar para depois. Pode apostar que não vou esquecê-lo e deixar passar incólume esse salvamento das aparências!

Por outro lado, vós sabeis que com nenhuma palavra Deus ordenou pedir intercessão nem aos anjos nem aos santos, sendo que também na Escritura não há exemplo disso; verifica-se que os queridos anjos falaram com os pais e os profetas, mas jamais algum deles foi solicitado pessoalmente [a fazer] intercessão, nem o patriarca Jacó pediu intercessão a seu anjo da luta, mas apenas dele recebeu a bênção. Encontra-se, isto sim, o contrário em Apocalipse, onde o anjo não quis deixar-se adorar por João, resultando, portanto, que a adoração aos santos é mera palhaçada humana, invenção própria estranha à Palavra de Deus e à Escritura.

Mas como no culto a Deus nada nos cabe fazer sem a ordem de Deus, e quem o fizer estará desafiando a Deus, não se deve recomendar nem tolerar que se peça intercessão aos santos falecidos ou ensine a invocá-los, mas antes, deve-se condená-lo e ensinar a evitá-lo, razão por que eu também não quero recomendá-lo nem onerar a minha consciência com falta alheia. Eu mesmo fiquei tão farto disso que larguei de vez os santos, pois nisso estive profundamente atolado e afogado. Mas agora a luz do Evangelho está brilhando com tanta claridade que, doravante, ninguém terá desculpa de ficar nas trevas. Quase todos sabemos muito bem o que devemos fazer.

Além disso, trata-se de um culto que, por si próprio, é perigoso e escandaloso, pelo fato de as pessoas muito facilmente se acostumarem a deixar Cristo de lado e confiar mais nos santos do que no próprio Cristo, uma vez que a natureza de qualquer forma está muito inclinada a fugir de Deus e de Cristo para confiar em pessoas, tornando-se, inclusive, dificílimo aprender a confiar em Deus e em Cristo, como, afinal, prometemos e é nossa obrigação. Por isso, não se deve tolerar esse escândalo com o qual as pessoas fracas e carnais praticam uma idolatria, contrariando o primeiro mandamento e o Batismo. Que se desvie para Cristo a confiança depositada nos santos, tanto no ensino como na prática; já, assim, é difícil chegar a ele e captá-lo bem. Não é preciso pintar o diabo na porta, ele achará [o caminho] sozinho. Finalmente, temos certeza de que Deus não ficará irado por isso e estamos bem seguros, mesmo que não invoquemos os santos por intercessão, pois em lugar algum ele o ordenou; afinal, ele diz que é um [Deus] zeloso, que pune as faltas daqueles que não cumprem o seu mandamento. Ora, sobre esse ponto não há mandamento, por isso não há que temer ira alguma. Como há segurança aqui deste lado, e ali grande risco e escândalo de se contrariar a Palavra de Deus, por que sairíamos da segurança para entrar em perigo, onde não temos Palavra de Deus que nos possa sustentar, confortar ou salvar na dificuldade? Pois está escrito: "Quem gosta de correr risco, nele perecerá". Diz também o mandamento de Deus: não tentarás o Senhor teu Deus. Ora, dizem eles, com essa argumentação, estás condenando toda a cristandade a qual sempre já praticou isso. Resposta: sei muito bem que os padres e monges buscam tal álibi para as suas atrocidades, querendo empurrar para a cristandade o que eles negligenciaram, para que, ao dizermos que a cristandade não erra, também digamos que eles, igualmente, não erram, não se podendo, portanto, puni-los por mentira nem erro algum, já que a cristandade assim o pratica. Desse jeito, não estará incorreta romaria alguma, (por mais flagrante que seja a presença do diabo), nem indulgência alguma (por mais deslavadas que sejam as mentiras). Em suma, ali só há santidade. Por isso, deveis deve dizer o seguinte a esse respeito: não estamos tratando agora de quem seria condenado ou não. Eles ficam introduzindo essa questão alheia para nos desviar do nosso assunto; estamos tratando agora é da Palavra de Deus; o que a cristandade é ou faz, são outros quinhentos. A questão aqui é o que é ou não é a Palavra de Deus. Aquilo que a Palavra de Deus não é também não configura a cristandade.

Lemos que na época do profeta Elias não havia, abertamente, nenhuma Palavra de Deus nem culto a Deus em todo o povo de Israel, como ele diz: "Senhor, mataram teus profetas e derrubaram teus altares. Estou totalmente sozinho"[1 Rs 19.10]. Aí o rei Acabe e outros também terão dito: "Elias, falando desse jeito, estás condenando todo o povo de Deus!"Mesmo assim, Deus tinha preservado sete mil. Ora, não achas que sob o papado, Deus não poderia ter preservado também agora os seus, mesmo que todos os padres e monges na cristandade tenham sido mestres do diabo e ido para o inferno? Muitíssimas crianças e jovens morreram em Cristo, uma vez que, debaixo do seu anticristo, Cristo preservou poderosamente o Batismo, mais o simples texto do Evangelho no púlpito, o Pai nosso e o Credo, com o que ele preservou muitos dos seus cristãos e, portanto, a sua cristandade, sem nada dizer a respeito aos mestres do diabo. E mesmo que os cristãos tenham praticado várias das atrocidades papais, com isso, os burros do papa ainda não provaram que os queridos cristãos o fizeram de bom grado, muito menos, provaram que os cristãos agiram acertadamente. Cristãos podem errar e pecar todos eles, mas Deus a todos eles ensinou a pedir pelo perdão dos pecados no Pai nosso, e soube muito bem perdoar-lhes tal pecado que tiveram que cometer a contra gosto, sem saber, e forçados pelo anticristo; mesmo assim, os padres e monges nada disso mencionam. Entretanto, pode-se provar muito bem que em todo o mundo sempre houve resmungo e queixa em segredo contra o clero, no sentido de que não estariam tratando corretamente a cristandade, sendo que os burros do papa até hoje resistiram veemente mente contra este resmungo, a ferro e fogo. Esse resmungo prova muito bem o quanto os cristãos apreciavam essas atrocidades e quão corretas elas eram. Então, queridos burros do papa, venham cá e digam que é ensinamento da cristandade isso que vocês, mentirosamente, inventaram, impondo-o, à força, à cristandade amada, feitos malfeitores e traidores e, como arquiassassinos, matando, por isso, muitos cristãos, uma vez que todas as letras em todas as leis do papa atestam que nada jamais foi ensinado por vontade e deliberação da cristandade, mas consta exclusivamente districte praecipiendo mandamus [ordenamos como preceito rigoroso], isto sim, é que foi seu espírito santo. Essa é a tirania que a cristandade teve que suportar, para lhe roubarem o Sacramento, ficando, assim, aprisionada, sem sua culpa. E agora, os burros do papa queriam nos vender essa tirania insuportável do seu sacrilégio como ato e exemplo voluntários da cristandade, tirando o corpo fora. Mas estamos nos alongando demais. Isso baste sobre a pergunta. Mais [a esse respeito], em outra oportunidade, e não me leve a mal a grande extensão da carta. Cristo nosso Senhor esteja com todos nós. Amém. Do ermo, 8 de setembro de 1530.

Martinus Luther Seu bom amigo.

Ao honorável e ilustre N., meu benévolo senhor e amigo.

Martin Luther, 1530